“O santo padre foi para o céu”. Uma mensagem simples no celular desnorteou o dia do professor cearense José Luís Lira, no início da manhã da última segunda-feira (21), abrindo com um solavanco o baú de memórias construídas ao longo dos últimos 12 anos. Antes de Francisco virar o papa, Lira teve contato especial com o cardeal Jorge Mario Bergoglio, homem “decisivo” para sua formação superior.
Hoje, José Luís é advogado, doutor e especialista em Direito Canônico, professor universitário e comendador da Santa Sé. Mas, no início de 2013, ainda buscava orientação no Mestrado em Direito Processual Constitucional pela Universidade Nacional de Lomas de Zamora, em Buenos Aires. À época, o cardeal Bergoglio era arcebispo da capital argentina.
A ideia inicial do pesquisador era desenvolver argumentações sobre liberdade religiosa. Na academia, foi orientado a entrar em contato com o bispo de Buenos Aires, ainda desconhecido para ele. Participou de uma missa e, terminada a celebração, foi recebido pelo líder religioso. “Só percebi que era cardeal pelo solidéu vermelho”, conta.
Lira nem precisou explicar muito do projeto porque Bergoglio já havia recebido uma prévia do documento. A recepção, contudo, não foi como o cearense esperava. “Foge um pouco à realidade”, ouviu do bispo. “Para mim, foi um balde de água fria, porque achava que ele ia gostar”, confessa o cearense.
Na primeira conversa, o cardeal fez vários questionamentos e os dois discutiram sobre a Constituição argentina. “Ele tinha discordâncias e acabou me convencendo, então desisti do projeto”, cedeu o professor. Noutra ocasião, já munido de um novo tema, recebeu um parecer mais favorável: “nesse, acho que esse você vai ter mais êxito”.
O terceiro encontro ficaria para depois do Carnaval de 2013. Antes de viajar ao Brasil, Lira ainda ouviu do cardeal: “tenha cuidado com o Rio de Janeiro, senão esquece os estudos”. Entre risadas, Lira explicou que voltaria ao Ceará, na região Nordeste. Imediatamente, Bergoglio lembrou de Dom Hélder Câmara, fortalezense e arcebispo emérito de Olinda e Recife, por quem tinha admiração.
Enquanto estava em Guaraciaba do Norte, sua terra natal, Lira foi surpreendido pelo noticiário da renúncia do papa Bento XVI, fato que abriu os caminhos para o conclave de 2013 e a eleição de um novo papa. Mal ele sabia que o escolhido seria justamente seu mentor.
Naquela semana, de volta a Buenos Aires, o pesquisador foi procurar Bergoglio na basílica. A secretária do cardeal informou que ele havia viajado a Roma para o processo eleitoral, mas havia deixado um bilhete endereçado ao cearense: “no retorno, o atenderei entre os primeiros”.
No fim das contas, Jorge Mario Bergoglio nunca voltou daquele conclave. Em 13 de março daquele ano, tornou-se Francisco, o 266º papa da Igreja Católica, mas primeiro lationamericano e primeiro jesuíta.
“Ele era um senhor de atitudes fortes, mas muito simples. Me recebeu sem muita burocracia, um estrangeiro, o que mostra o perfil do seu pontificado”, avalia Lira. “Ele teve uma influência decisiva na minha formação. Ele conhecia o mundo acadêmico e a realidade de lá”.
Tempos depois, Jorge Luís Lira esteve com Francisco em Roma. “Aprovastes a tese?”, perguntou o santo padre em espanhol. “Sim, santo padre, aprovei”, apressou-se em responder o ex-orientando. “Muito bem”, elogiou o pontífice, antes de conceder a bênção pelos 50 anos de matrimônio dos pais do cearense.
Rosário de presente
Entre tantas memórias, a imagem que o professor deve guardar com mais carinho do papa é o rosário com o qual foi presenteado após Francisco autorizar o decreto elevando a memória litúrgica de Santa Maria Madalena a uma festa.
Junto ao designer Cícero Moraes, Lira fez a reconstituição facial da Santa e enviou o material ao pontífice, em 2015. Em junho de 2016, Francisco transformou a memória litúrgica dela em data a ser celebrada pela Igreja.
Naquele mesmo mês, Lira recebeu de presente de Francisco um rosário especial, “perolado e muito bonito”, junto a uma mensagem.
Um detalhe não passou despercebido ao pesquisador: “ele datou a carta com a mesma data que assinou o decreto, como se dissesse ‘o trabalho de vocês influiu de algum modo na nossa decisão’”, acredita.
Santas padroeiras
Num dos encontros que teve com Bergoglio, Lira contou que tinha visitado a Basílica de Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, e notou que ela tinha características muito semelhantes às da Virgem de Aparecida, padroeira do Brasil.
“Isso merece um estudo”, sugeriu o cardeal, devoto da Virgem de Luján. O cearense enviou-lhe um livro com a explicação: as duas são a mesma figura. A diferença é que a estátua de Luján chegou 100 anos antes à Argentina, enquanto a imagem brasileira ficou 100 anos debaixo d'água.
Quando visitou o Brasil, em julho de 2013, na primeira viagem internacional de seu pontificado, o papa Francisco incluiu o Santuário Nacional de Aparecida em seu roteiro de viagem, como se unisse as duas pontas da história.
Pesquisadores de arte sacra apontam que as imagens “irmãs” se baseiam em Nossa Senhora da Imaculada Conceição - a representação de Maria livre da mancha do pecado - e inspiram profunda devoção popular nos dois países.
O legado de Francisco
Entre correspondências e presentes trocados, Lira manteve mais de uma década de contato com o mesmo homem, embora em momentos distintos. “Não conheci mais o cardeal do que o papa, mas os amigos que o conheceram em Buenos Aires dizem que a ação como papa foi a mesma do cardeal”.
“Desde o início do pontificado, o tema de Francisco foi a paz. Sua primeira atitude foi ir ao encontro dos refugiados na Catânia, na Itália. Nos momentos finais, ele se angustiava com a guerra. Isso mostra uma luta constante pela paz, como Jesus Cristo pregou”, entende o professor. “Nessa Páscoa, ele não faleceu: ele ressuscitou junto com Cristo”.
(Diário do Nordeste)