O que é ser escritor?
Carlos Dias
Comecei a perder minha mãe quando tinha oito anos.
Em uma escola, numa pequena cidade do interior do Ceará,
aprendi a ler e a escrever. Mas foi nos finais de semana da minha infância e
durante minhas férias escolares, no sertão do meu avô, localizado no Pé da
Serra do Barriga, que fica próximo à região da Cabeça do Boi, que conheci
pessoas alfabetizadas em tratar bicheira de vaca, queimar coivara, adivinhar a
chuva, deitar galinha, amansar cavalo brabo e a dobrar tudo que eu aprendi como
reto.
De segunda a sexta, fazia cópias, decorava histórias,
estudava os mapas, aprendia os dígrafos, os encontros consonantais, dividia as
sílabas e os números.
Nos sábados e domingos, nos julhos e dezembros, minha
curiosidade infantil era afrouxada. Via os meninos do Pé da Serra ter a mesma
erudição de seus pais, avós e, o mais incrível, sem ir à escola.
Quando completei onze anos, comecei a perder com mais
velocidade os cabelos da minha mãe, um de seus seios e a minha infância.
Nos intervalos entre cabelos, seio e infância, passei a
escrever poesias.
Com o fim da intermitência, contrariando a aridez da minha
estação, o inverno foi antecipado e congelou a primavera da minha infância.
Desamparado com o violento temporão, um Troço que entrecruza as palavras, intensificou
sua fala de mim comigo.
Hoje, já com a minha sombra caminhando lenta, de súbito, sou
interrogado sobre: o que é ser escritor? O Troço, que no linguajar da Serra são
as coivaras queimadas, os bichos mortos, enfim, os restos, nunca me perguntou
isso.
Conheço vários escritores. Pessoalmente ou por meio de suas
obras, sei que são escritores, mas ser de crer escritor é um Outro ser. Nessa
busca angustiante pela resposta dessa pergunta, que se confunde com “quem sou
eu?”, deparo-me em um flerte acinzentado com esse Outro. Reencontro o balbucio
dos primeiros versos, só lidos por Ela e avisto, em lágrimas, as reminiscências
de uma secreta passagem subterrânea, que me arrasta para o silêncio do infanticídio.
Submergido, olho para os Troços que deveriam ter sido
enterrados e que eu, os reencarnei em forma de amálgamas. Emerjo, encaro a
esfinge e encontro, ainda hoje, nas cavidades dos meus textos, quatro décadas
depois, as marcas d’Ela e as chagas na linguagem, perfurada por uma lâmina
dobrada na figura de um infinito.
Insisto, e feito míope releio os textos roçando no meu rosto.
Assombrado, identifico nas entreletras essas marcas, chagas, dobras em formatos
de criptas, até mesmo das expressões satíricas.
Apesar do ar lúgubre e do tropeço das pernas, adentro um
pouco mais no antro das palavras e o que aparentemente enxergo, através da
projeção de minha silhueta, é que ser Escritor é ser um Criptófaro.
P.S. Este texto é um tributo a quem, amorosamente,
me apresentou à extimidade do entulho, lugar repleto de troços perdidos comigo.
Este tributo é uma homenagem a Ela,
escritora, psicanalista e minha orientadora, Bety Fuks.