Analisando
o tom das reportagens, de alguns testemunhos e de algumas homenagens, fiquei
com a impressão de que Chorão morreu porque tinha um grande coração, porque
tinha uma grande alma, porque era talentoso demais, porque estreitava no peito
mais humanidades do que Cristo, como diria Fernando Pessoa. Alguém, em algum
momento, lamentou, então, que tantas virtudes tivessem se perdido por causa das
drogas? Não!
Ao
contrário até: uma análise dos signos postos para circular com o objetivo de
exaltar os seus ditos múltiplos talentos fazem, indiretamente, a apologia dessa
suposta visão alternativa de mundo, que não se encaixaria, sei lá como chamar,
na ordem burguesa. De algum modo, parece que Chorão morreu porque o mundo não o
compreendeu, não lhe pagou devidamente por seu grande coração. Até que veio a
público o testemunho de sua mulher.
Graziela
Gonçalves é o nome desta brasileira corajosa. Não! Chorão não morreu porque era
talentoso demais, ainda que fosse. Não morreu porque tinha uma grande alma,
ainda que a tivesse. Não morreu porque era dotado de múltiplos
talentos, que fosse. Morreu mesmo por
causa da cocaína, das drogas. Drogas
que, ela deixou claro, ele não tinha dificuldade nenhuma de conseguir. Ficou no
ar a suspeita, é evidente, de que estava preso numa espécie de círculo, em que
a dita-cuja era coisa corriqueira.
“Ah,
mas o testemunho dela foi ao ar, Reinaldo, e na imprensa!” É verdade. Porque
ela teve a coragem de dar a cara ao tapa. Não fosse isso, a morte deste senhor,
que era ídolo de gente muito mais jovem, segundo entendi, passaria como mais um
caso de martírio do herói. E não! Definitivamente, ainda que Chorão fosse o
Schopenhauer do rap (não sei se era porque desconheço e não falarei a
respeito), ele não é mártir de nada. Ele foi vítima de sua própria concepção
equivocada de mundo e de suas escolhas comprovadamente erradas.
Em
certa medida, todo homem é também vítima de si mesmo: eu, você que me lê, todo
mundo. Apenas repudio essa cortina de silêncio sobre a causa da morte e a óbvia
distorção em curso. Se tivesse morrido, sei lá, de câncer, emprestar-lhe-iam
certamente um tom menos épico — ou menos dramático, a depender do caso.
O
tratamento jornalístico dispensado ao caso é uma das muitas inversões morais em
curso no nosso tempo. Que fique o testemunho de Graziela que vi no Fantástico.
Ela tentou de tudo. Perdeu o marido para o vício, mas o perdeu também para uma
das faces mais escuras da cultura da morte: a tolerância dos supostamente
progressistas com as drogas.
(Por Reinaldo Azevedo)