Pelo buraco da fechadura de Nelson Rodrigues, a cena ou a
obscena.
Carlos Dias
Há
quatro anos um amigo chamado Frota emprestou-me sua casa na Vila Vintém, Região
da Serra da Meruoca, para que pudesse passar o feriado de carnaval. Esta semana
resolvi retornar ao local e recordar os momentos vividos. Fiquei a flanar pelas
veredas do local a procura dos rastos de memória que estariam perdidos nas
valas de sua paisagem.
De
repente, caminhando em passo de cágado, vi a cruz de Zé Acorip. O fato fez
minha consciência usurpar a catação das reminiscências de quatro anos atrás e
lembrar as inesquecíveis crônicas de Nelson Rodrigues. Fiquei a imaginar que se
Nelson conhecesse a história de Zé Acorip a transformaria em literatura de
qualidade.
No
entanto, leitor, infelizmente, Nelson já não se encontra entre nós. Por isso
queria compartilhar com você, caso não seja atraiçoado por minha memória de
galo, a história de Zé Acorip.
Você
já deve ter ouvido falar do Zé, caso diga não, pode se considerar um incrível
desinformado. Zé Acorip foi um dos mais ilustres revolucionários dessa Região.
Assassinado, em virtude de suas ideias. Morreu na quarta-feira de cinzas, o
último dia da minha estada, no feriado de quatro anos atrás.
Não
sei se por respeito, educação ou curiosidade, fui ao enterro de Zé. Agora,
recordando bem, tudo e todos, durante o velório lembravam as personagens de
Nelson Rodrigues. Por isso minha mente insisti em fazer essa analogia.
Mas
antes de falar do velório, para vocês que são desinformados, vou descrever
sucintamente quem foi Zé Acorip.
A
alcunha é originária de uma rixa de quando ainda era criança. Zé e seu amigo
Barrote foram disputar quem urinava mais distante. Por supor que Zé teria
fraudado a séria disputa, Barrote deu um talho no falo de Zé. A incisão não
dividiu o instrumento em gume, mas ocasionou uma cicatriz que o revolucionário
levou para a vida inteira. A marca ficou acometida na pele e na designação
pessoal. Para amenizar o significante social do apelido, Zé, inteligentemente,
deu um avesso na etimologia do termo.
Zé
Acorip sempre foi um grande revolucionário, um verdadeiro militante político
das causas sociais. Durante seus inflamados discursos, Zé utilizava algumas
frases do Che e do Marx, que havia aprendido com um latifundiário da Região que
tinha sido preso político na revolução de sessenta e quatro. Se Nelson
presenciasse tal fato, como gostava de satirizar das coisas sérias, quem sabe
diria que inveja a burrice, por que é eterna.
Até
que um dia, o grande militante, descobriu que a sua luta achava-se fora de
moda. Percebeu que o discurso das classes sociais deixou de ser utilizado. Zé
ficou frívolo... Não sabia o que proferir, não entendia por qual caminho deveria
seguir. Zé estava vazio...
Mas
certo dia, perambulando pelo mercado da Vila encontrou um panfleto divino.
Tratava-se da propaganda de uma indústria de cosmético, anunciando que o
discurso social da vez era o ecológico.
Zé
aprendeu com bastante facilidade termos como: Desenvolvimento sustentável,
Ecossistema, Cadeia ecológica dentre outros. Imediatamente, largou sua
profissão de vendedor de madeira para as olarias de Sobral e passou a ser o
Chico Mendes da Meruoca.
Logo
de início travou uma batalha contra o poder público. Levantou a bandeira contra
a construção de um cemitério num local onde existiam dezenas de cajueiros. Para
ele era injustificável matar cajueiros em detrimento de um espaço para enterrar
pessoas mortas.
Zé
defendeu essa causa durante meses, inclusive no período de sua candidatura a
Vereador. Diga-se de passagem, deixou de ser eleito por um voto. Contam que na
véspera da eleição ele teve uma discussão com Barrote, chegando a dizer que não
precisava do voto do “amigo” para ser eleito. Barrote, ainda hoje, jura que
mesmo com a quizila teria votado em Zé. Outros populares da Região defendem que
Barrote votou em branco. Os mais maldosos sustentam que Barrote teria votado no
vereador que foi eleito e ainda se tornou o atual gerente do cemitério. Penso
eu, que se Zé Acorip fosse pedir conselho ao velho Nelson, o escritor falaria
para o revolucionário “não se apressar em perdoar. Pois a misericórdia
também corrompe”.
O
grande progressista da Vila Vintém findou perdendo a batalha e a vida. Durante
um protesto solitário um cajueiro caiu sobre sua cabeça e o grande ativista
morreu no mesmo instante da tragédia.
Voltando
ao que nos interessa, durante o velório, choro, sorriso, cachaça e contação de
histórias confundiam o verdadeiro motivo da ocasião. Mas um fato chamava a
atenção de todos. Belarmina, a viúva, mulher que trazia consigo um olhar de
requinte social, um corpo escultural zelado pela academia das prendas doméstica
e um temperamento inervado da nordestina, passou a noite inteira sendo acalentada
por Barrote.
Na
hora de enterrar o defunto-revolucionário inicia-se uma nova confusão. O
gerente não aceitava que Zé fosse enterrado no Cemitério da Vila Vintém.
Belarmina, enfurecida, manda que os populares deixem o corpo na casa do
gerente. Desesperado, com o corpo sendo levado sobre suas costas, o
administrador concede enterrar Zé Acorip.
Alguns
meses depois, encontro-me com o amigo Frota em um café no Becco do cotovelo.
Meu amigo contou-me que Barrote estava vivendo junto com Belarmina. Até aí tudo
bem. Mas um detalhe chamou-me a atenção. Despertando em mim a alma de Nelson
Rodrigues. Nas núpcias do novo casal, Belarmina deu um talho no falo de
Barrote. A incisão não dividiu o instrumento em gume, mas o ocasionou uma
cicatriz que fez com que Barrote a levasse para o resto da vida. A marca ficou
acometida na pele e na designação pessoal. Para amenizar o significante do
apelido, Barrote imitou Zé, deu um avesso na etimologia do termo e passou a se
chamar de Barrote Acorip. Em troca de tamanha dor fulgurante, ganhou o
verdadeiro amor de Belarmina.
Caso
meu amigo Frota tivesse contado esse final para Nelson, provavelmente ele
diria: “ Se todos conhecessem a intimidade sexual um dos outros, ninguém
cumprimentaria ninguém.”
*
Artigo publicado no Jornal Correio da Semana