Memórias de Lúcio de Almeida Neves, advogado e sobrinho de Tancredo Neves, o presidente que morreu sem tomar posse
1º
Ato – Sob pressão militar
Às
15h30 do dia 22 de julho de 1992, uma quarta-feira, o mineiro Itamar Augusto
Cautiero Franco, 62 anos, o 21.º vice-presidente do Brasil, recebeu um bilhete
enquanto ouvia uma palestra do brigadeiro da reserva Clóvis Pira na sede da
Embraer, em São José dos Campos, interior de São Paulo. Itamar estava no
exercício da Presidência da República. O titular do cargo, Fernando Collor de
Mello, viajara a Madri junto com mais 20 chefes de Estado para participar da
Reunião de Cúpula Ibero-Americana, convocada por Juan Carlos, rei da Espanha.
Ao fim da palestra, Itamar chamou seu assessor de imprensa, Lúcio de Almeida
Neves, também mineiro, e disse-lhe:
–
Os ministros militares querem na medida do possível que eu antecipe o regresso
a Brasília. Vamos antecipar. Mas o que diremos à imprensa?
–
Vamos dizer que sua mãe não passa bem. E que você irá visitá-la depois em Juiz
de Fora – respondeu Lúcio.
Lúcio de Almeida Neves e Itamar Franco
De fato, Itália Cautiero, mãe
de Itamar, estava muito doente. Morreria em dezembro, com mais de 80 anos de
idade. Segundo dos quatro filhos do general Roberto de Almeida Neves, preso
pelo golpe militar de 1964, Lúcio trabalhava com Itamar há dois anos. Seu pai
fora vizinho de “parede e meia” de Itamar em Juiz de Fora e era um dos 12
irmãos de Tancredo Neves, o presidente da República eleito em 1985 que morreu
sem tomar posse. Tancredo escondera o estado precário de sua saúde com medo de
que a posse fosse abortada por militares inconformados com o fim da ditadura.
O Boeing 737, o número 2 da frota de
aviões presidenciais, posou de volta em Brasília cerca das 18h, com Itamar e
sua comitiva. Faziam parte dela, entre outros, os senadores Jarbas Passarinho
(PDS-PA) e Jutahy Magalhães (PMDB-BA); os embaixadores Gilberto Saboia e Sérgio
Duarte; o brigadeiro Sócrates da Costa Monteiro, ministro da Aeronáutica; mais
cinco brigadeiros, e os jornalistas Haroldo Holanda, Eliane Cantanhede e Mauro
Santayana. Na Base Aérea, Itamar trancou-se numa sala com os três ministros
militares – além de Costa Monteiro, animado por três ou quatro doses de uísque
que bebera durante o voo –, o general Carlos Tinoco Ribeiro Gomes (Exército) e
o almirante Mário César Flores (Marinha). A reunião durou meia hora. Aos
jornalistas que perguntaram sobre os assuntos tratados Itamar respondeu com
poucas palavras:
– Questões do Orçamento das três Armas.
Mentiu.
Ministros só discutem orçamento com o presidente da República. Mas seu assessor
de imprensa só soube que o vice-presidente mentira depois que Itamar lhe
ordenou:
– Você vem comigo, Lúcio.
Dentro
do carro, em direção à sua casa na Península dos Ministros, no Lago Sul de
Brasília, Itamar comentou, sombrio:
– Dr. Lúcio, além da crise política que o
país enfrenta ainda podemos ter uma crise institucional (e fez
com o dedo indicador da mão direita um sinal de fechar a boca, apontando em
seguida para o motorista que poderia estar atento à conversa).
Itamar
só chamava Lúcio de “Dr. Lúcio” quando a situação era grave. E era. Ele temia
ser preso.
Ato
2 – Golpe e fuga
Embora
a residência oficial do vice-presidente fosse o Palácio do Jaburu, a menos de
um quilômetro do Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente da
República, Itamar preferiu morar em uma ampla casa cedida pela Marinha na
Península dos Ministros, do lado oposto da cidade. Tinha três militares como ajudantes
de ordem: um coronel da Aeronáutica, um capitão do Exército e um comandante da
Marinha. Não confiava segredos a eles. No geral, desconfiava dos militares. Foi
de Juiz de Fora, na madrugada de 31 de março de 1964, que partiram para o Rio
de Janeiro as tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho, dando início
ao golpe militar. Dois anos depois, Itamar elegeu-se prefeito da cidade e
provou na pele as restrições e os dissabores de governar sob uma ditadura.
Manifestação pedindo o impeachment de Collor
Só
após jantar em silêncio com Lúcio foi que ele o convidou para a varanda da casa
que dava para um jardim interno. E, ali, os dois sozinhos, contou-lhe o que
ouvira na Base Aérea do general Tinoco, ministro do Exército. Em resumo, Tinoco
disse que a imagem do Brasil estava péssima no exterior desde que o empresário
Pedro Collor, em entrevista à revista Veja em abril daquele ano, denunciara
como corrupto seu irmão presidente. A Câmara dos Deputados instalara uma
Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a denúncia. Seria possível a
abertura de um processo de impeachment. Tinoco garantiu a Itamar que os
militares tinham como impedir o retorno de Collor de Madri, mas queriam saber
se ele concordaria em assumir a Presidência. O vice limitou-se a responder:
–
Só farei o que está escrito na Constituição. Dela não me afasto.
Sim,
mas se mesmo contra sua vontade o golpe encabeçado por Tinoco fosse adiante? –
refletiu Itamar em voz alta na conversa com Lúcio. Deduziu que nesse caso
correria o risco de ser preso. O que fazer? Fugir? Mas como? Então, teve uma
ideia: exilar-se na Embaixada da Itália. Seu sobrenome Cautiero era de origem
italiana. Herdara-o da mãe, que descendia de migrantes italianos. Fugir da casa
onde morava pela porta da frente chamaria a atenção dos agentes que cuidavam de
sua segurança. Por que não sair pelos fundos da casa que dava para o Lago
Paranoá, e de lá fugir de barco? O prédio da embaixada era perto e também tinha
acesso ao lago. Ocorre que não havia barco na casa de Itamar, nem tempo para
providenciar um. O golpe poderia ser deflagrado a qualquer momento. E aí? Aí
Lúcio sugeriu: entre os fundos da casa e o lago havia um espaço vazio de cerca
de 150 metros que casais, à noite, ocupavam para namorar. Se pusessem, ali,
dois carros, poderiam escapar sem ser vistos pelos seguranças, atravessar a
Ponte Presidente Costa e Silva e chegar ao setor de embaixadas onde ficava a da
Itália. Lúcio ofereceu seu carro, um Monza, com a vantagem de os vidros serem
fosco. Itamar tinha uma Mercedes antiga.
General Carlos Tinoco (esquerda), ministro do Exército de Collor
A
noite do vice foi tensa, e o dia seguinte também. Mas julho chegaria ao fim sem
que houvesse golpe, e com o presidente da República a pouco menos de dois meses
de ser afastado do cargo pela Câmara. Só no fim de dezembro, o Senado aprovaria
seu afastamento em definitivo. Nesse meio-tempo, Itamar arquitetou um plano
para livrar-se de Tinoco. “Esse general é golpista e não será meu ministro do
Exército”, confidenciou a Lúcio. Ou melhor: ao Dr. Lúcio.
Ato
3 – Presidente grampeado
Agosto
não traz boas notícias políticas para o Brasil desde que o presidente Getúlio
Vargas, no dia 24 de agosto de 1954, matou-se com um tiro no coração para não
ser deposto pelos militares, e o presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de
1961, Dia do Soldado, renunciou ao cargo que ocupava há menos de seis meses.
Jânio tinha a esperança de voltar nos braços do povo e com um Congresso
enfraquecido. Os ministro militares imploraram para que ele não renunciasse. Em
vão.
Itamar
não teve paciência para esperar agosto, muito menos a queda de Collor e a sua
ascensão à Presidência. Era preciso golpear Tinoco antes – quem sabe? – que ele
o golpeasse. Na sexta-feira dia 24 de julho, apenas dois dias depois de ter
ouvido do general que Collor poderia ser deixado em Madri, onde àquela altura
ainda permanecia, Itamar avisou a Lúcio:
–
Informe à imprensa que irei despachar amanhã no meu gabinete.
O
gabinete da Vice-Presidência fica em um prédio anexo ao Palácio do Planalto, na
Praça dos Três Poderes. Sem ter nenhuma medida de impacto a anunciar, não fazia
sentido Itamar deslocar-se até lá. Despacharia em casa, dando uma folga aos
jornalistas. Era como procedia ao exercer a Presidência em fins de semana
quando Collor estava fora do país. O que ele tramava calado sem que Lúcio
soubesse? Lúcio só começou a desconfiar do que era na manhã do sábado. Itamar,
no seu gabinete de vice, chamou-o e perguntou:
–
Leu o Jornal de Brasília?
Não
lera. Manchete de capa do jornal: “Ministro do Exército já articula apoio a
Collor”. Em sua coluna diária, o jornalista Haroldo Holanda, amigo de Itamar,
escrevera que o general Tinoco assumira “ostensivamente a defesa da permanência
de Fernando Collor no Poder”. Com isso, segundo Holanda, Tinoco ameaçava
“envolver o Exército na crise política decorrente das investigações pela CPI do
caso PC Farias”, o ex-tesoureiro da campanha de Collor que com dinheiro de
caixa dois pagava despesas particulares do presidente.
Orientado por Itamar, Lúcio sondou os jornalistas de plantão na Vice-Presidência sobre a repercussão do que Holanda publicara. Não houve repercussão. Nos anos 1990, os jornais não citavam uns aos outros, como fazem agora. Itamar acionou sua secretária para que ela localizasse Tinoco e lhe dissesse que queria vê-lo de imediato. Por temperamento, Itamar não deixava nada barato. No início do governo, Lúcio fora surpreendido com a notícia que ouviu no rádio de que Itamar, no exercício da Presidência, ameaçava demitir Jarbas Passarinho, ministro da Justiça. Tudo porque Itamar julgara ser um desrespeito de Passarinho enviar-lhe por fax uma informação que ele pedira, ao invés de fazê-lo pessoalmente.
Collor e Roseane saindo do Palácio do Planalto depois que a Câmara o afastou, em outubro de 1992
A
secretária levou quase duas horas para achar Tinoco; finalmente encontrou-o no
Clube do Exército. À paisana, mas de terno completo e sem manchas da farofa que
comera em um churrasco, Tinoco foi recebido por Itamar com frieza. “O senhor
leu o Jornal de Brasília?” – indagou o vice. Tinoco não lera. Itamar estendeu-lhe
um exemplar do jornal. E depois de o general ter lido em silêncio a coluna de
Holanda, Itamar cobrou:
– O
que o senhor tem a dizer a respeito?
Tinoco
respondeu que não fora a fonte da informação de Holanda, que a notícia não
procedia, e que as Forças Armadas respeitavam a Constituição. Itamar não se deu
por satisfeito:
– O
senhor se dispõe a dizer isso à imprensa?
Nesse
momento, Lúcio temeu o pior. Se Tinoco respondesse que não, Itamar poderia
ordenar sua prisão. Mas depois de pensar por alguns segundos, o general acatou
a sugestão e repetiu para os jornalistas o que dissera a Itamar. No dia
seguinte, apenas o Jornal de Brasília publicou a fala de Tinoco. O destino do
general estava selado caso Itamar sucedesse Collor na Presidência. Sucedeu-o a
partir do dia 2 de outubro de 1992, embora ainda em caráter temporário. Na
tarde do dia 8, já no gabinete presidencial do terceiro andar do Palácio do
Planalto, Itamar despachava com Lúcio quando entrou sem se anunciar o senador
Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP), nomeado ministro das Relações Exteriores.
Filho de militar, o ministro entregou a Itamar uma tirinha de papel onde estava
escrito: “Zenildo Gonzaga Zoroastro de Lucena”. Itamar leu, repassou a tirinha
a Lúcio e disse-lhe:
–
Avise à imprensa.
–
Avisar o quê, Itamar? – perguntou
Lúcio com a tirinha de papel na mão.
–
Avise que esse é o nome do novo ministro do Exército.
–
Mas vão me perguntar quem ele é, e eu não sei – devolveu Lúcio.
Pelo
jeito, nem Itamar sabia. Fernando Henrique disse a Lúcio que Zenildo era o
comandante do Leste, indicado pela maioria dos generais do Alto Comando do
Exército ao saberem que Itamar rifara Tinoco. A imprensa publicou a notícia no
dia seguinte sem muito destaque. Nesse mesmo dia, Itamar descobriu que o
telefone de sua casa, em Brasília, e a central telefônica do Hotel Glória, no
Rio, onde costumava se hospedar, tinham sido grampeados.