segunda-feira, 3 de abril de 2017

CARTA RENÚNCIA DO DR. KLAUBER ROGER, EX-DIRETOR DO HOSPITAL DO CORAÇÃO

 
Veja Carta Renúncia do Dr Klauber Roger, ex-diretor do Hospital do Coração de Sobral.

Sobral, março de 2017


Reverendíssimo Senhor José Luiz Gomes de Vasconcelos
Bispo Diocesano de Sobral,


Há 21 anos, retornei a minha terra com o sonho e a determinação de fincar em seu torrão um hospital de alta complexidade em Cardiologia. Eu e Padre José Linhares Ponte. Em meio aos descréditos, em 11 meses construímos e colocamos em funcionamento o nosso Hospital do Coração. A sua  gestação  começou na Enfermaria Monsenhor Eufrásio da nossa, não menos querida, Santa Casa de Misericórdia de Sobral. Ali, eu e a enfermeira Ana Célia Carneiro trabalhamos dia e noite para organizar o que viria a ser o Hospital do Coração. Escolhemos os colaboradores, formatamos os protocolos e rotinas, organizamos os treinamentos e, sobretudo, convencemos a todos que poderíamos, sim, oferecer para Sobral e região noroeste um dos mais importantes equipamentos hospitalares do Brasil. Em 22 de dezembro de 1996, inauguramos o Hospital do Coração. Passei a morar dentro dele, ia a minha casa poucas vezes, apesar da esposa e dos filhos pequenos. Fiz de tudo no Hospital do Coração: fui motorista, telefonista, zelador e plantonista diário dos diversos setores, já que os médicos eram poucos. Adotei o Hospital do Coração como parte de mim e da minha vida. A ele não poupei energia e trabalho. Nele, passei a maioria das minhas páscoas e dos meus natais, em contínuo plantão de sobreaviso aos pacientes infartados. Agradeço muito a minha querida Regina pela paciência e aos meus filhos que nunca me cobraram as ausências. Nunca me arrependi do tamanho desvelo.  O Hospital do Coração foi o meu maior professor: ensinou-me organização e disciplina, administração, a força inabalável do trabalho, a barreira protetora da honestidade e, maiormente, ensinou-me humanidade. Nada fiz sozinho, tudo foi feito com as mãos operárias de muitos, que também passaram a amar aquela estrutura que ao longo dos anos firmou-se como destino seguro de cuidado, esperança e cura. Neste momento difícil da minha vida, a gratidão aos funcionários do Hospital do Coração é quem apazigua a minha alma e a protege de outros sentimentos, que, certamente, somente a mim, fariam mal.
Carregarei na minha temporalidade o amor irrestrito ao Hospital do Coração: ajudei na sua concepção, acompanhei, passo a passo, as suas construções física e humana e o encaminhei para que se tornasse o melhor hospital do Estado do Ceará. Isto ninguém tem o poder de suprimir da minha história e da do Hospital do Coração. Poderão, até mesmo, sucumbi-lo, mas somente após os seus 21 anos. Amo-o, genuinamente. Um amor verdadeiro, e como tal, sem posse. Como no dizer de Immanuel Kant, o amor é por essência liberto. Muitos até falaram que o Hospital do Coração é como pertencesse ao Dr. Roger. Tudo bem, mas nunca isto incomodou-me. O Hospital do Coração que está em mim não é o da estrutura física, do terreno, das paredes, dos equipamentos ou do dinheiro envolvido em tudo isto. É o da obra, da missão, do ministério e do privilégio que retém de, extraordinariamente, servir às pessoas. De salvar vidas. De amenizar sofrimentos. Receber gratidões. Fica difícil para aqueles mais preocupados com os penduricalhos do poder, indiferentes às utopias e paixões, compreenderem esta relação.  Elegemos  como  filosofia  de  vida  cuidar  das  pessoas  com máxima dignidade: pacientes e cuidadores. Levantamos um hospital onde o paciente, alheio aos estratos sociais, é a majestade. Ao pobre, o mesmo leito do rico. Ao  pobre,  a  mesma  comida  do  rico.  Ao  pobre,  os  mesmos  meios  de tratamento do rico. Nos mesmos moldes, construímos uma forte relação familiar entre os nossos colaboradores, recompensando-os por seus desempenhos, sem privilégios ou apadrinhamentos. Fizemos do entusiasmo, do envolvimento e do pertencimento características inerentes à nossa cultura. Veja, construímos uma cultura, um jeito de ser e de cuidar. Passamos a dizer “muito obrigado” aos nossos colaboradores cuidando dos seus filhos, provendo-lhes  do  que  é  mais  sagrado  à  inserção  de  uma  vida  digna: educação de qualidade. Com imensa ajuda dos colégios Luciano Feijão, Escola São Francisco e Faculdades INTA passamos a custear, através do Projeto Filhos   do   Coração,   as   despesas   (matrículas,   livros,   fardamentos, acompanhamento psicopedagógico) com educação para filhos dos nossos colaboradores.   Deste   projeto   já   saíram   “doutores”   que   certamente melhorarão as suas famílias e a sociedade. Importante ressaltar, que tudo foi feito com responsabilidade financeira, nada nos faltou, só crescemos ao longo destes anos, apesar dos desafios da saúde pública no Brasil.
Desde o dia que cheguei a Sobral e comecei o primeiro trabalho da minha vida como médico, e já à frente do Hospital do Coração, entendi que nunca poderia envolver-me em qualquer situação na qual, no melhor das hipóteses, fosse preciso justificar-me. Percebi cedo que jamais teria a condescendência das pessoas. Portanto, ao longo destes anos trabalhei no Hospital do Coração como se a cada dia fosse submetido a uma investigação. Reproduzi, sistematicamente, isto aos meus amigos colaboradores, para que fizessem o mesmo.  Ao  longo  destes  21  anos,  o  meu  maior  auditor  foi  a  minha consciência e o apego aos meus valores humanos. Transparência e clareza são premissas naturais de tudo que faço e pactuo. O mundo pode pensar qualquer  coisa  sobre  qualquer  pessoa,  mas  enquanto  pelo  menos  um individuo não provar, o mundo todo estará equivocado. Quero mesmo dizer- lhe que, ao longo destes anos, tratei com máxima honestidade e decência os negócios do Hospital do Coração, com todo acervo documental de contabilidade e finanças facilmente disponível à sociedade e a qualquer auditoria.
No Hospital do Coração, também ganhei dinheiro. Asseguro-lhe, nunca como objetivo primário. Sempre fui bem remunerado, no entanto, veio como consequência natural e inexorável do trabalho com horas excessivas que tenho dispensado. Este fato incomodou a muitos, e por muitos anos. São os mesmos que fizeram fileira para que o Bispo determinasse a pena capital. Sei, verdadeiramente, das pressões que o Senhor tem sofrido e a minha decisão também vai ao encontro da sua suavidade. É mais fácil para mim ceder. Sou livre. Tudo que conquistei na vida foi por concursos e muito trabalho. Não tenho amigos “importantes” e não tenho, nem mesmo quero, algum poder. Alegra-nos, a mim e a minha família, jamais ter abdicado das nossas coerências frente aos nossos valores para, unicamente, satisfazer a subserviência imposta pelo poder. Não tenho envolvimento político com ninguém e nunca me reclamaram quaisquer contrapartidas as minhas vinculações de amizade ou de trabalho.
Hoje, o Reverendíssimo Bispo propõe-me que continue no Hospital do Coração apenas como integrante de uma “gestão compartilhada“ e subtrai- me a autonomia de função e gestão imprescindível à mais primária estrutura administrativa. Por total impossibilidade de oferecer qualidade e excelência nas minhas ações como gestor, e por entender que é melhor para o Hospital do Coração sobreviver em braços alheios que morrer nos meus, informo-lhe, serenamente, a minha decisão de demitir-me da condição de diretor do Hospital do Coração Padre José Linhares Ponte. Doravante, exercerei, tão somente, o virtuoso trabalho de médico.

José Klauber Roger Carneiro