Veja Carta Renúncia do Dr Klauber Roger, ex-diretor do Hospital do Coração de Sobral.
Sobral, março de 2017
Reverendíssimo Senhor José Luiz Gomes de Vasconcelos
Bispo Diocesano de Sobral,
Há 21 anos, retornei a minha terra
com o sonho e a determinação de fincar em seu torrão um hospital de alta
complexidade em Cardiologia. Eu e Padre José Linhares Ponte. Em meio
aos descréditos, em 11 meses construímos e colocamos em funcionamento o
nosso Hospital do Coração. A sua gestação começou na Enfermaria
Monsenhor Eufrásio da nossa, não menos querida, Santa Casa de
Misericórdia de Sobral. Ali, eu e a enfermeira Ana Célia Carneiro
trabalhamos dia e noite para organizar o que viria a ser o Hospital do
Coração. Escolhemos os colaboradores, formatamos os protocolos e
rotinas, organizamos os treinamentos e, sobretudo, convencemos a todos
que poderíamos, sim, oferecer para Sobral e região noroeste um dos mais
importantes equipamentos hospitalares do Brasil. Em 22 de dezembro de
1996, inauguramos o Hospital do Coração. Passei a morar dentro dele, ia a
minha casa poucas vezes, apesar da esposa e dos filhos pequenos. Fiz de
tudo no Hospital do Coração: fui motorista, telefonista, zelador e
plantonista diário dos diversos setores, já que os médicos eram poucos.
Adotei o Hospital do Coração como parte de mim e da minha vida. A ele
não poupei energia e trabalho. Nele, passei a maioria das minhas páscoas
e dos meus natais, em contínuo plantão de sobreaviso aos pacientes
infartados. Agradeço muito a minha querida Regina pela paciência e aos
meus filhos que nunca me cobraram as ausências. Nunca me arrependi do
tamanho desvelo.
O Hospital do Coração foi o meu maior
professor: ensinou-me organização e disciplina, administração, a força
inabalável do trabalho, a barreira protetora da honestidade e,
maiormente, ensinou-me humanidade. Nada fiz sozinho, tudo foi feito com
as mãos operárias de muitos, que também passaram a amar aquela estrutura
que ao longo dos anos firmou-se como destino seguro de cuidado,
esperança e cura. Neste momento difícil da minha vida, a gratidão aos
funcionários do Hospital do Coração é quem apazigua a minha alma e a
protege de outros sentimentos, que, certamente, somente a mim, fariam
mal.
Carregarei na minha temporalidade o
amor irrestrito ao Hospital do Coração: ajudei na sua concepção,
acompanhei, passo a passo, as suas construções física e humana e o
encaminhei para que se tornasse o melhor hospital do Estado do Ceará.
Isto ninguém tem o poder de suprimir da minha história e da do Hospital
do Coração. Poderão, até mesmo, sucumbi-lo, mas somente após os seus 21
anos. Amo-o, genuinamente. Um amor verdadeiro, e como tal, sem posse.
Como no dizer de Immanuel Kant, o amor é por essência liberto. Muitos
até falaram que o Hospital do Coração é como pertencesse ao Dr. Roger.
Tudo bem, mas nunca isto incomodou-me. O Hospital do Coração que está em
mim não é o da estrutura física, do terreno, das paredes, dos
equipamentos ou do dinheiro envolvido em tudo isto. É o da obra, da
missão, do ministério e do privilégio que retém de, extraordinariamente,
servir às pessoas. De salvar vidas. De amenizar sofrimentos. Receber
gratidões. Fica difícil para aqueles mais preocupados com os
penduricalhos do poder, indiferentes às utopias e paixões, compreenderem
esta relação.
Elegemos como filosofia de vida
cuidar das pessoas com máxima dignidade: pacientes e cuidadores.
Levantamos um hospital onde o paciente, alheio aos estratos sociais, é a
majestade. Ao pobre, o mesmo leito do rico. Ao pobre, a mesma
comida do rico. Ao pobre, os mesmos meios de tratamento do
rico. Nos mesmos moldes, construímos uma forte relação familiar entre os
nossos colaboradores, recompensando-os por seus desempenhos, sem
privilégios ou apadrinhamentos. Fizemos do entusiasmo, do envolvimento e
do pertencimento características inerentes à nossa cultura. Veja,
construímos uma cultura, um jeito de ser e de cuidar. Passamos a dizer
“muito obrigado” aos nossos colaboradores cuidando dos seus filhos,
provendo-lhes do que é mais sagrado à inserção de uma vida
digna: educação de qualidade. Com imensa ajuda dos colégios Luciano
Feijão, Escola São Francisco e Faculdades INTA passamos a custear,
através do Projeto Filhos do Coração, as despesas (matrículas,
livros, fardamentos, acompanhamento psicopedagógico) com educação
para filhos dos nossos colaboradores. Deste projeto já saíram
“doutores” que certamente melhorarão as suas famílias e a sociedade.
Importante ressaltar, que tudo foi feito com responsabilidade
financeira, nada nos faltou, só crescemos ao longo destes anos, apesar
dos desafios da saúde pública no Brasil.
Desde o dia que cheguei a Sobral e
comecei o primeiro trabalho da minha vida como médico, e já à frente do
Hospital do Coração, entendi que nunca poderia envolver-me em qualquer
situação na qual, no melhor das hipóteses, fosse preciso justificar-me.
Percebi cedo que jamais teria a condescendência das pessoas. Portanto,
ao longo destes anos trabalhei no Hospital do Coração como se a cada dia
fosse submetido a uma investigação. Reproduzi, sistematicamente, isto
aos meus amigos colaboradores, para que fizessem o mesmo. Ao longo
destes 21 anos, o meu maior auditor foi a minha consciência e o
apego aos meus valores humanos. Transparência e clareza são premissas
naturais de tudo que faço e pactuo. O mundo pode pensar qualquer coisa
sobre qualquer pessoa, mas enquanto pelo menos um individuo não
provar, o mundo todo estará equivocado. Quero mesmo dizer- lhe que, ao
longo destes anos, tratei com máxima honestidade e decência os negócios
do Hospital do Coração, com todo acervo documental de contabilidade e
finanças facilmente disponível à sociedade e a qualquer auditoria.
No Hospital do Coração, também ganhei
dinheiro. Asseguro-lhe, nunca como objetivo primário. Sempre fui bem
remunerado, no entanto, veio como consequência natural e inexorável do
trabalho com horas excessivas que tenho dispensado. Este fato incomodou a
muitos, e por muitos anos. São os mesmos que fizeram fileira para que o
Bispo determinasse a pena capital. Sei, verdadeiramente, das pressões
que o Senhor tem sofrido e a minha decisão também vai ao encontro da sua
suavidade. É mais fácil para mim ceder. Sou livre. Tudo que conquistei
na vida foi por concursos e muito trabalho. Não tenho amigos
“importantes” e não tenho, nem mesmo quero, algum poder. Alegra-nos, a
mim e a minha família, jamais ter abdicado das nossas coerências frente
aos nossos valores para, unicamente, satisfazer a subserviência imposta
pelo poder. Não tenho envolvimento político com ninguém e nunca me
reclamaram quaisquer contrapartidas as minhas vinculações de amizade ou
de trabalho.
Hoje, o Reverendíssimo Bispo
propõe-me que continue no Hospital do Coração apenas como integrante de
uma “gestão compartilhada“ e subtrai- me a autonomia de função e gestão
imprescindível à mais primária estrutura administrativa. Por total
impossibilidade de oferecer qualidade e excelência nas minhas ações como
gestor, e por entender que é melhor para o Hospital do Coração
sobreviver em braços alheios que morrer nos meus, informo-lhe,
serenamente, a minha decisão de demitir-me da condição de diretor do
Hospital do Coração Padre José Linhares Ponte. Doravante, exercerei, tão
somente, o virtuoso trabalho de médico.
José Klauber Roger Carneiro